09 janeiro 2004

Ondas de radiação.

Corpos de bronze falso, cobertos de fragmentos de montanhas já idas, tensos e deitados em cima de tecidos de imagens estampadas, foleiras,
com químicos de protecção espalhados docilmente. Canso o meu olhar,
sossego o folgo contido, o respirar descontrolado, levanto-me. Corro para a água, mergulho. Nado, para longe, criando uma distância enorme entre mim e o resto. Mergulho. Nado dentro da água, quente e calma, como se procurasse um motivo para esquecer tudo o resto, todos os restos, libertando-me assim de problemas
que me consomem. Deixo-me flutuar, olhando para o céu, como um corpo morto
a fugir, arrastado pelas correntes, e penso em tudo o resto, o resto que tento sempre me esquecer. Acalmo o respirar, profundo, olhando para o azul ofuscante, abrasador, e recolho da minha memória o que necessito de resolver.
Se conseguir voltar, ainda em tempo, no tempo dos outros, vou telefonar para ti. Vou tentar falar contigo, dizer-te coisas que nunca consegui, perto de ti, dizer. Tenho de te falar, de te dizer que te odeio, que me metes nojo, que não suporto mais saber que vives, que o teu belo sorriso me dá náuseas, vómitos,
lembrar-me que a minha língua lambeu a tua, tocou os teus dentes,
a minha saliva misturada no teu suor. Quero te matar, arrancar do meu imaginário, criação da memória, do passado ainda marcante.
Quero-te misturar nas cinzas do meu passado, do meu já existido. Fecho os olhos. Com uma mão molho a cara, água salgada. Mergulho de novo.
Nado em direcção aos corpos de bronze falso, radiações de marcas diversas. Caminho na areia. Vou para o carro, abro a porta, entro.
Chave na ignição, primeira. Vidros abertos. Tenho de ir ao multibanco,
não me posso esquecer. Ligo o rádio, Cd de musica, mp3, musica de Dj’s franceses.
Aumento o volume. Fecho os vidros. Djacid - lyondance, Junior Market – dnb,
D_vision – funky. Molho os lábios. Sorrio. Paro o carro no fim da curva,
puxo o travão e desligo o carro. Encosto a cabeça, e imagino projectado no vidro do carro, as imagens que recordei na água. Fecho os olhos.
O telemóvel toca, atendo. Uma voz irritante pergunta-me onde estou,
vai para a merda. Foda-se, deixe-me em paz, não me apetece aturar seja lá quem for. Foda-se. Olho para o relógio no tablier do carro, tenho de limpar esta merda toda, só sujidade. Saio. Nesta rua as pessoas parecem ser todas um monte
de animais sem destino, soltos sem dono. Bem, vou continuar a andar,
se calhar vou andar a acelerar, aos saltos ou em passos bem curtos. Não sei.
Vou até ao café ali ao pé da paragem, cantinho do mané. Um mil – folhas
e uma cola, obrigado. Não, não é necessário um cinzeiro, obrigado.
Sento-me numa mesa ao canto, lá ao fundo, refundido. Desenho no guardanapo, uns riscos quaisquer e sujo os dedos com a tinta da caneta futura.
Acabo a cola e apetece-me arrotar, não o faço, é muito mal aspecto,
muito mesmo, bocejo. Quanto é? € 3? Chiça! Tudo bem, é melhor sair daqui,
que estes gajos roubam bem. Na rua, as pessoas continuam a comportar-se como animais, soltos e sem dono. Sem nexo. Sem seja lá o que for. Também não me interessa. Deixo o carro, ali, ao pé da curva, estacionado e dirigi-me para o jardim ali perto. Sento-me num qualquer banco, sacudo a areia das botas, areia da praia dos corpos de bronze falso, como a apagar a memória deste verão intenso.
Deito-me no banco e adormeço.

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